Devem os Super Heróis ser perfeitos?



Durante aquela que é chamada a Era Dourada de banda desenhada de super heróis, durante os anos 50, estes eram retratados de uma maneira muito semelhante entre si. Eram deuses, seres com poderes, meios, ou inteligência inatingível pelo ser humano comum. As suas moralidades maniqueístas e simplistas colocavam-nos como os defensores do bem, sendo este um conceito pouco definido e representando as ideias dos bons costumes da época. Não era suposto ser uma representação de falhas ou imperfeições da humanidade, mas eram sim ideais, figuras perfeitas colocadas apenas para serem almejadas pelo indivíduo comum, sem nunca serem atingidas.

Com o passar dos anos esta perspetiva face aos super heróis foi sendo alterada, de acordo com as sensibilidades da população que também em si sofriam alterações. Hoje em dia, na intitulada era moderna de banda desenhada, os super heróis afastam-se dos tempos de capas brilhantes e perfeccionismo que os caracterizaram durante tanto tempo. Os tons tornaram-se mais negros e os nossos heróis mais humanos; como tal, mais imperfeitos. Deixámos de os ver como seres distantes, mas sim indivíduos que se debatem com os mesmos dilemas morais que nos assolam a todos sendo que o que os caracteriza como heróis não é a sua impermeabilidade a dificuldades, mas a forma como as utilizam para evoluir e tornarem-se melhores versões de eles próprios.

Martino e Laurinao (2013) explicam que o conceito do ideal de Super-Mulher nasceu nos movimentos feministas que surgiram nos anos 50/60 e centra-se na ideia de que uma mulher pode “ter tudo e fazer tudo”. Três elementos contribuem para este ideal:

Masculinidade – A Super-Mulher equilibra o seu papel tradicional de mãe e dona de casa com novas pressões tradicionalmente masculinas no mercado de trabalho;

Perfeccionismo – A Super-Mulher procura perfeição e sucesso em todas as áreas da sua vida;

Imagem Corporal – A Super-Mulher possui uma aparência atraente de acordo com os padrões modernos de beleza corporal.

Esta procura pela perfeição nas mulheres torna-se incomportável e um slogan que em tempos teve um impacto positivo na introdução das mulheres no mercado hoje revela-se contribuir para o perfeccionismo neurótico. Sim as mulheres podem “ter tudo e fazer tudo”, mas quando essa é a expectativa que impomos sobre nós próprios, o que acontece se tal não for atingido?

Dour e Theran (2011) exploraram o relação entre o ideal de Super-Herói (expandido o termo de Super-Mulher para abranger rapazes) e o Perfeccionismo Maladaptativo, definido como a inabilidade para lidar com a discrepância entre a realidade e os padrões irrealistas impostos pelo próprio. Descobriram que particularmente nas mulheres, aquelas que tinham o ideal de Super-Mulher e simultaneamente apresentavam altos níveis de Perfeccionismo Maladaptativo, demonstravam hábitos de alimentação pouco saudáveis. Assim, expondo que não é o ideal de Super-Mulher que é prejudicial em si, mas que a ausência de estratégias de coping para lidar com a inevitável não concretização desse objetivo irrealista, poderá levar a problemas psicológicos que por sua vez se manifestam em maus hábitos alimentares.

Múltiplos estudos (Hart, & Kenny, 1997; Mensinger, Bonifazi, & LaRosa, 2007; Thornton, Leo, & Alberg, 1991), incluindo mais recentes (Carter, & Rossi, 2019; Frenkel, 2018; Weinberger-Litman, Latzer, Litman, & Ozick, 2018) exploram estes conceitos e propagam a ideia transmitida anteriormente, inclusivamente relacionando-a em meios mais específicos como contextos religiosos e de minorias raciais. Não sendo eu próprio um especialista nesta área, deixo-os aqui para quem mais interesse possuir no tema. Gostaria no entanto de ressalvar que no artigo de Hart e Kenny (1997) é mencionado que apesar de uma ligação inegável entre o ideal de Super-Mulher e a presença de distúrbios alimentares, quando este ideal é acompanhado de um apoio familiar, em particular dos pais, na promoção da autonomia das jovens universitárias, estas tendem a apresentar-se como pessoas socialmente e emocionalmente mais bem adaptadas do que as suas pares com menor apoio familiar.

Existem mecanismos comportamentais para combater esta tendência perfeccionista como não assumir um número irrealista de responsabilidades e mantendo bem definido os limites da extensão que está disposta a trabalhar (Carter e Rossi, 2019). Contudo, imbuído no ideal de Super-Mulher está também a ideia de que assumir um número irrealista de responsabilidades e manter fronteiras de trabalho flexíveis é uma virtude (Carter e Rossi, 2019).

Com o advento das redes sociais, este tipo de questões de imagem corporal não são apenas facilitadas, pela possibilidade de comparação quase que automáticas com terceiros, mas inclusivamente chegam a ser incentivadas em fóruns on-line. Comunidades de pessoas que partilham distúrbios alimentares tomam-na como parte da sua identidade e incentivam-se entre si a entrar em comportamentos autodestrutivos de forma a atingir os padrões de beleza corporal irrealistas que impuseram sobre elas mesmas. Estes fóruns  declaram-se, inclusivamente, a favor (PRO) Distúrbios Alimentares.

Numa análise de conteúdo destes mesmos fóruns, é de notar que, embora reconhecendo que distúrbios alimentares são problemas psicológicos e não devem ser glorificados como um estilo de vida, o conteúdo partilhado aparenta contradizer esta descrição, com relatos de experiências de sucesso de manutenção de maus hábitos alimentares, surgindo maioritariamente comentários de apoio, sem nenhum estar direcionado para recuperação ou ajuda médica (Sowles, McLeary, Optican, Cahn, Kraus, Fitzsimmons-Craft, & Cavazos-Rehg, 2018). Adicionalmente, os próprios moderadores tendem a banir qualquer comentário que encare os distúrbios alimentares como um problema a ser resolvido acabando por encher o espaço da discussão com imagens de partes do corpo com ossos salientes, como um braço ou uma clavícula, a serem recebidos por comentários como “thinspiration”, uma combinação entre o termo magra e inspiração (Sowles, et al., 2018).

Desta forma reformulo a pergunta do título, “Deverá a Super-Mulher ser perfeita?”. A procura pela perfeição talvez seja uma corrida perdida antes de sequer começar. Torna-se necessário pensar: da mesma forma que os nossos super heróis tanto viram as suas representações tão alteradas talvez o mesmo seja necessário para o ideal de Super-Mulher. Devemos então sair da era dourada em que nos mantemos e finalmente integrar uma NOVA ERA, mais moderna...

Num mundo digital, a Super-Mulher existe, mas não é apenas uma imagem no ecrã, imune a dificuldades; é sobretudo aquela mulher que, ao invés de se deixar definir pelas dificuldades, com elas evolui. Ou seja, mais do que um ser PERFEITO, é alguém em aperfeiçoamento... Acima de tudo o seu maior poder é o realismo e saber que os desafios que enfrenta são alcançáveis e não vilões invencíveis.

Se desejamos combater as más consequências do perfeccionismo, então necessitamos de começar por nos reconceptualizar a nós próprios. Como PESSOAS, com falhas e dilemas, e não como super heróis perfeitos.

Guilherme Correia

 

Referências Bibliográficas

Carter, L., & Rossi, A. (2019). Embodying Strength: The Origin, Representations, and Socialization of the Strong Black Woman Ideal and its Effect on Black Women’s Mental Health. Women & Therapy42(3-4), 289-300.

Dour, H. J., & Theran, S. A. (2011). The interaction between the superhero ideal and maladaptive perfectionism as predictors of unhealthy eating attitudes and body esteem. Body Image, 8(1), 93–96.

Frenkel, T. D. (2018). Relationship between the ideal woman model, self-figure drawing, and disordered eating among Jewish Ultra-Orthodox women and National Religious women. The Israel Journal of Psychiatry and Related Sciences55(1), 73-84.

Hart, K., & Kenny, M. E. (1997). Adherence to the super woman ideal and eating disorder symptoms among college women. Sex Roles36(7-8), 461-478.

Martino, S., & Lauriano, S. (2013). Feminist identity and the superwoman ideal. Journal of Behavioral Health2, 167-172.

Mensinger, J. L., Bonifazi, D. Z., & LaRosa, J. (2007). Perceived gender role prescriptions in schools, the superwoman ideal, and disordered eating among adolescent girls. Sex Roles57(7-8), 557-568.

Sowles, S. J., McLeary, M., Optican, A., Cahn, E., Krauss, M. J., Fitzsimmons-Craft, E. E., & Cavazos-Rehg, P. A. (2018). A content analysis of an online pro-eating disorder community on Reddit. Body image24, 137-144.

Thornton, B., Leo, R., & Alberg, K. (1991). Gender role typing, the superwoman ideal, and the potential for eating disorders. Sex Roles25(7-8), 469-484.

Weinberger-Litman, S. L., Latzer, Y., Litman, L., & Ozick, R. (2018). Extrinsic religious orientation and disordered eating pathology among modern orthodox Israeli adolescents: The mediating role of adherence to the superwoman ideal and body dissatisfaction. Journal of religion and health57(1), 209-222.


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